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            Terra Sonâmbula: Guerra Civil, corrupção do governo personificada e a tradição oral metaforizando o desenrolar dos acontecimentos em Moçambique.


            Terra Sonâmbula. O que dizer de uma obra que, ao mesmo tempo em que devaneia pelas veredas da tradição oral, também é um retrato lúcido da situação moçambicana no período da guerra civil? Não será pelo fato de estar representada por esta tradição oral, tão singular e importante na cultura africana, que a guerra civil de Moçambique ganha contornos tão originais, diria até surreais, no enredo desta obra? Um sono intermitente, como o próprio título sugere, que envolve esta terra sedada pela guerra, obrigando-a a transformar-se num cenário caótico itinerante, no qual as mazelas do conflito são mostradas, ao mesmo tempo, de forma subseqüente e concomitante. Em suma, um pesadelo real.

            Antes é sempre bom saber algo sobre o autor dessa Terra Sonâmbula. Mia Couto é um escritor moçambicano filho de portugueses que emigraram para Moçambique. Ele viveu seus primeiros anos na cidade da Beira, onde completou sua escolarização. Mia Couto estudou medicina, mas abandou os estudos para exercer a atividade de jornalista. Retornou os estudos universitários na área de biologia, na qual hoje trabalha como professor universitário. Mia Couto hoje é o autor moçambicano mais traduzido, suas obras, caracterizadas pelo chamado realismo mágico e também pela ficção histórica, o que sobressai em suas obras é, sobretudo, a originalidade. 
  
            Os doze cadernos de Kindzu trazem histórias que retratam um Moçambique no qual a população parece ter perdido seu referencial, seja ele de território ou até mesmo de pertencimento a uma coletividade maior, a nação moçambicana. Apesar de estarem na forma escrita, às histórias de Kindzu são caracterizadas pela oralidade, pelo teor de epopéia narrada ao redor de uma fogueira, sob uma frondosa árvore, fazendo-nos remontar as assembléias aldeãs do período pré-colonial. Kindzu demonstra a necessidade, que de certa forma é geral, de organizar suas idéias e, de forma, a racionalizar os acontecimentos em meio a um ambiente hostil.
                       
“Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz.”[1]
           
            A narrativa de Kindzu chegaria às mãos de um jovem e seria praticamente a única fonte capaz de fazê-lo imaginar um horizonte no qual a luta pela superação do conflito se desenrolava, de forma metafórica e por muitas vezes fantástica, mas que de forma alguma deixava de deliberar meticulosamente sobre a guerra civil.

            Concentremos-nos temporariamente num pequeno resumo dessa obra de Mia Couto. Durante a guerra civil moçambicana, dois sobreviventes e andarilhos vagueiam pelo território desabitado, o velho Tuahir e o menino Muindiga. Num país devastado pelo conflito civil do pós – independência, ambos buscam a sobrevivência em meio ao esmo e as ruínas de uma nação agonizante.

            O menino Muindiga é encontrado doente após comer mandiocas contaminadas por ratos, o velho Tuahir, vendo que ele ainda se encontrava vivo, e não tendo Muindiga família ou alguém responsável por ele, decide levá-lo consigo. Daí em diante eles andam pelo território marcado pela guerra sempre evitando tornarem-se vítimas do conflito. A morte é algo que mantêm constante presença, seja pelo conflito armado, pelas doenças oriundas da desestruturação das condições de vida devido a guerra, ou ainda pela fome generalizada.

            Nas suas perambulações, Tuahir e Muindiga encontram um machibombo (ônibus) abandonado, que lhe servirão de abrigo durante vários dias. Esse machimbombo encontra-se a beira de uma estrada, que parece mudar a sua paisagem conforme o passar do tempo. È como se em lugar do machimbombo se mover, algo impossível devido ao seu estado deplorável, o tornando parecido muito mais com sucata do que com um automóvel, a estrada estaria sendo responsável pelo movimento e conseqüentemente, pela mudança de paisagem. A estrada estaria de certa forma, viva, fazendo desfilar cenários moçambicanos marcados pela guerra. È no ônibus que Muindiga encontra os cadernos de Kindzu, responsáveis pela maior parte do enredo de Terra Sonâmbula.

       “-Sempre estávamos aqui pertinho, a reduzidos metros.”
       “Tudo acontecera na vizinhança do autocarro. Era o país que desfilava por ali, sonhambolante. Siqueleto se esvaindo, Nhamataca fazendo rios, as velhas caçando gafanhotos, tudo o que se passava tinha sucedido em plena estrada.” [2]

            Em Moçambique no pós-independência, verifica-se um fenômeno político e social muito freqüente na maioria dos países que conseguiram sua emancipação entre as décadas de 1960 e 1970, fenômeno esse que diz respeito a nova forma de estruturação do Estado, descentralizado e voltado para uma maior integração na economia mundial. Como se pode verificar, esse tipo de organização do Estado não tem atendido as necessidades da maioria da população africana, muito pelo contrário, essa estrutura tem contribuído para aumentar as disparidades sociais e tem criado governos que fazem do Estado uma espécie de propriedade privada, utilizando-o para fins próprios. Ki-Zerbo, na sua entrevista em Para Quando África?, faz uma análise bastante perspicaz da atuação dos novos governos, sobretudo da África subsaariana, no período do pós- independência, demonstrando como a estrutura do Estado está sendo usada, não para contribuir para o desenvolvimento desses novos países, mas sim para reforçar uma relação de dominação dessas elites que estão no poder político. Esse tipo de situação também se faz presente em Terra Sonâmbula, como explicita a seguinte passagem:
  
                                   “Carolina ardia em raiva. Seu marido tinha dado as expressas ordens: aqueles sacos só poderiam ser distribuídos quando ele estivesse presente. Era uma questão política para os refugiados sentirem o peso de sua importância.”[3]

            Vê-se aqui que o jogo político das elites do poder em Moçambique se faz mais importante do que a necessidade de alimentos para uma população que sofria com a fome generalizada do período beligerante. Nota-se nesta passagem que Estevão Soares, então denominado o administrador, usava sua posição como componente do governo para gerir sobre um bem público arbitrariamente. Há semanas que ele não visitava o centro dos refugiados, e assim a comida guardada se estragava com o passar do tempo. Ainda citando as afirmações de Ki-Zerbo, se observa que os dirigentes africanos, como elite, no pó-independência, estão muito abaixo do que se espera de um comportamento moral condizente com um governo, o que se vê é a forte presença da corrupção e do nepotismo. Não existe mais a idéia desses dirigentes prestarem contas a certas instâncias parciais de poder, algo muito presente na organização aldeã do período pré-colonial. Em Terra Sonâmbula, Estevão Soares, o chamado administrador, será praticamente a personificação desses governos corruptos, tão característicos do período pós-colonial.

            Novamente retomo Ki-Zerbo para essa discussão. De acordo com ele na maioria dos países africanos não há elites independentes que possuam meios financeiros que lhes garantam autonomia em relação ao poder político, não há uma burguesia constituída. Há também o problema de que os governos desses países que se tornaram independentes não alcançaram o poder de forma legítima, ou seja, através de eleições. A influência de programas de ajustamento estrutural, que têm como objetivo diminuir a atuação do Estado nesses países, e também em Moçambique, fazem notar a influência do Banco Mundial e do FMI na economia desses países africanos. Esse vazio no Estado só tem feito crescer as disparidades sociais, já que ele é preenchido por uma maior dominação econômica dessas elites. A ingerência externa em Moçambique aparece de forma metafórica no discurso de um velho feiticeiro em Terra Sonâmbula:

       “Será mil vezes pior que o passado pois não vereis o rosto dos novos donos e esses patrões se servirão de vossos irmãos para vos dar castigo.” [4]

            Até mesmo um acordo firmado entre o moçambicano Estevão Soares, o administrador, e o espírito do falecido Romão Pinto, português latifundiário em Moçambique no período colonial, dá a impressão de como a administração pública está corrompida. O absurdo de um pacto firmado com um defunto só faz tornar a denúncia literária ainda mais veemente. A elite moçambicana é representada por Estevão Soares, enquanto Romão Pinto retrata setores do período colonial insatisfeitos com a emancipação e ainda interessados em manter uma dominação econômica.

            A esquerda também tem seu papel prejudicado com esse tipo de administração corrupta do governo, pois ela é muito debilitada ainda e necessita de incentivos para a sua atuação. A não adesão do multipartidarismo, por exemplo, é algo que torna mais difícil a tomada de posição dessa esquerda, responsável pela oposição política. Em Moçambique, vemos que uma primeira tentativa de coletivização das terras foi interrompida em favor de um modelo privatizante. O neoliberalismo foi preponderante para a tomada desse modelo.

            A estrutura dos textos de Mia Couto, que procura imprimir um caráter diferenciado em sua escrita, não tomando os moldes lusos como paradigma, é algo que assemelha a perspectiva de sua literatura com a nova abordagem da história africana, pois sua literatura também busca uma identidade africana, mesmo Mia Couto tendo reconhecido a heterogeneidade de sua formação cultural, já que ele é um autor filho de portugueses, mas tendo vivido em Moçambique. Vê-se a convergência das perspectivas da literatura de Mia Couto e da nova história abordada sob a ótica africana na passagem de Ki- Zerbo:
       “Com efeito, a história da África, como a de toda a humanidade, é a história da tomada de consciência. Nesse sentido, a história da África deve ser reescrita. E isso porque, até o presente momento, ela foi mascarada, camuflada, desfigurada, mutilada.”[5]

            Afirma-se aqui que Terra Sonâmbula se enquadra nessa nova perspectiva, já que na sua narrativa, não estão presentes somente aspectos degradantes de uma guerra civil. Mesmo enfocando um assunto tão delicado e difícil, Mia Couto consegue narrar sob uma forma que mostra também a beleza de seu país, num discurso que, por incrível que pareça devido à situação beligerante de Moçambique, torna-se revelador de uma cultura extremamente poética.  
           
            Poderíamos classificar a obra de Mia Couto de acordo com um segmento literário denominado realismo fantástico, o qual tem como expoente na América latina o colombiano Gabriel García Márquez, vencedor do Nobel de literatura e autor do fantástico Cem Anos de Solidão. Algumas obras de outro Nobel de literatura, o português José Saramago também se encaixam nesse gênero. Observa-se que no caso de Mia Couto, parece que não é ele que faz realismo fantástico, e sim a tradição oral que, ao se fazer presente em sua literatura, é capaz de moldá-la levando-a a transformar o irreal em real. 



                                               Referências

           
COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. São Paulo. Companhia das Letras, 2007.

KI-ZERBO, Joseph. História Geral da África. São Paulo. Ática; Paris; UNESCO, 1982.

KI-ZERBO, Joseph. Para Quando África? Entrevista com René Holenstein. PALLAS, 2006.



[1] COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. São Paulo. Companhia das Letras, 2007. (p.15)
[2] COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. São Paulo. Companhia das Letras, 2007. (p.137)
[3] COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. São Paulo. Companhia das Letras, 2007. (p.188)
[4] COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. São Paulo. Companhia das Letras, 2007. (p. 201)
[5] KI-ZERBO, Joseph. História Geral da África. São Paulo. Ática; Paris; UNESCO, 1982. (p. 21)





O Vermelho e o Negro: O fantasma da Revolução assombra a França.

            Julien Sorel, jovem camponês da provinciana cidade francesa de Verrières almejava ser padre no período pós-revolucionário da França, já que esta, no período da Restauração, era uma profissão que “abria caminhos”.
 O que se vê nessa obra prima de Stendhal é a crônica da sociedade francesa no período da Restauração. O autor, que vivenciou está época, traz o retrato de uma França comandada por uma nobreza que a todo o tempo temia a volta do período revolucionário. Todos os resquícios do governo napoleônico e jacobino eram conjurados pela monarquia francesa. Todos que porventura mostrassem alguma simpatia pelo regime anterior eram vistos como possíveis inimigos da Coroa francesa.
Napoleão Bonaparte havia aberto o caminho para a burguesia francesa, e os que demonstravam habilidade em algum campo de atuação social, sejam habilidades militares ou políticas, caso do próprio Napoleão, podia almejar uma ascensão social, fato que era impossível na sociedade rigidamente hierarquizada do antigo regime. A Revolução Francesa havia gerado condições para uma maior participação de outros grupos sociais, não somente a nobreza, na vida política do país. Foi desse contexto que o personagem principal da obra o Vermelho e o Negro, o jovem camponês Juien Sorel, retirou as principais influências que seriam responsáveis pela formação de sua conduta. Vê-se que Julien tem uma forte admiração pela figura de Napoleão, já que ele se identifica com o jovem general, uma vez que Bonaparte, assim como ele, veio de uma família não nobre e tornou-se imperador da França através somente de suas grandes realizações durante as campanhas militares e durante a administração do Estado francês.
“Contudo, em certo sentido, a educação representava, tão eficazmente quanto os negócios, a competição individualista, ‘a carreira aberta ao talento’ e o triunfo de mérito sobre o nascimento e os parentescos, através do instrumento do exame competitivo”.[1]  
            Logo no inicio do romance se tem a descrição da vida de uma pequena cidade francesa, Verrières. Quando Stendhal descreve o prefeito desta cidade logo uma frase chama atenção, afirma o autor que o Senhor de Rênal, então prefeito de Verrières, deve a sua nova condição, sobretudo depois dos acontecimentos de 1815, isto é, a volta dos Bourbons ao poder. A prefeitura lhe viera como resultado da Restauração.
            Em toda obra existe a demonstração do clima de repressão as características do período revolucionário francês. Os habitantes da cidade que liam o jornal o Constituitionnel, por exemplo, foram perseguidos pelo juiz de paz de Verrières, todas as suas sentenças pareciam injustas contra os que possuíam a assinatura desse jornal. Esse periódico, surgido em 29 de outubro de 1815, embora fosse um jornal partidário da monarquia temperada, era um dos canais de divulgação das idéias dos liberais franceses.
            Voltando-se novamente para o nosso personagem principal, o jovem Julien Sorel, se vê que ele foi astuto o suficiente para notar que a sua inclinação para a figura de Napoleão Bonaparte seria um grande empecilho para o seu plano de chegar a uma posição de destaque na sociedade francesa desse período, tanto que ele desiste de se tornar um militar e decide seguir a carreira eclesiástica, muito mais propícia ao contexto histórico da Restauração. Foi uma mudança de carreira por conta das mudanças políticas da França. Julien é chamado, pelo fato de saber latim, para ser preceptor dos filhos do Senhor de Rênal (prefeito de Verrières), aceitando o convite, mas ele sentia ódio e horror á essa alta sociedade em que fora admitido, uma vez que a sua admissão se deu por baixo, através da contratação de seus serviços. A sua aversão ao Senhor de Renal se deve também ao fato do prefeito ter multiplicado sua fortuna após começar a administrar os bens públicos. Numa forma de realizar pequenas vinganças cotidianas Julien, por exemplo, persuade o prefeito a fazer a assinatura do jornal liberal La Quotidienne, fundado no período revolucionário (1792), um dos órgãos do partido jacobino. O bonapartismo era esconjurado sob várias formas, até mesmo alguns tipos de conduta eram mal vistas, como diz Stendhal, após a queda de Napoleão, qualquer aparência de galanteria estava severamente banida dos costumes da província:
            “Tem-se medo de ser destituído. Os velhacos buscam um apoio na congregação; e a hipocrisia fez os mais belos progressos até nas classes liberais. O tédio redobra. Não sobra outro prazer senão a leitura e a agricultura.” [2]
               
                Um dos pensamentos da Senhora de Renal, mulher do prefeito, a respeito da conduta do jovem preceptor de seus filhos, após um dos vários incidentes em que ele se sentiu humilhado pelo Senhor de Renal demonstra bem o temor da aristocracia francesa de uma nova Revolução. Segundo ela, foram momentos de humilhação, como as que Julien sofrera pelo prefeito, que fizeram surgir os Robespierre. Numa das conversas de Julien com a Senhora de Renal, após exaltar Napoleão, ele sente que se arrisca:
            “Ela é boa e meiga, gosta muito de mim, mas foi educada no campo inimigo.” [3]
            Ora, o campo inimigo é exatamente a aristocracia francesa, educada para ser contra-revolucionária. Uma das reflexões da senhora de Renal demonstra essa concepção aristocrática:
            “... a Senhora de Renal ficara espantada com a frase de Julien porque os homens da sociedade repetiam que a volta de Robespierre seria possível principalmente por causa desses jovens das classes baixas, bem educados demais.” [4]
                Há a alusão no romance as Sociedades da Congregação, espécie de reuniões periódicas feitas pelos empregados das casas aristocráticas francesas. Segundo os liberais, elas tinham a finalidade de vigiarem os senhores. No romance a Senhora de Renal diz que chega a pagar a um de seus empregados para se manter informada quanto às intenções dessas reuniões, ela mesma fala que paga vinte francos para não correr o risco de ter sua família esganada por uma possível revolta popular comandada pelos empregados. As referências ao medo de uma revolta popular é uma constante no texto, sendo que esse temor ora aparece explicito ora se apresenta de forma mais sutil.
            Um dos momentos do livro em que se revela o quanto ter inclinações para o período napoleônico poderia ser perigoso é quando Julien pede que a senhora de Renal retire uma foto que ele guardava embaixo do seu colchão de palha, uma vez que naquele dia o prefeito mudaria todas as palhas das camas de sua propriedade. A Senhora de Renal faz o que lhe fora pedido por Julien, imaginando, devido a sua paixão pelo jovem preceptor, que seria o retrato da mulher pela qual ele estaria apaixonado. Não imaginava ela que, dentro daquele envelope, estaria à foto do grande herói de Julien Sorel, ou seja, uma foto do próprio Napoleão. Queimando-a, Julien livra-se de uma série de problemas que surgiriam devido as suas preferências políticas.           
 Quanto à vida política de Verrières vê-se que o Senhor de Renal mostra-se descontente pelo fato de três industriais da cidade haverem se tornando mais ricos do que ele e que queriam contrariá-lo nas eleições. Vê-se nesse ponto que a atividade industrial projeta uma burguesia que, devido a sua importância como classe que impulsiona essa atividade, começa a ter também um peso político na sociedade francesa, não podendo ser desprezada na disputa pelo controle do Estado. A nobreza francesa passa a ter que aceitar a concorrência desse novo grupo social. A coexistência desses dois grupos com seus interesses específicos trarão transformações na própria estruturação do Estado
A admiração de Julien pela figura de Napoleão Bonaparte é tão grande que ele chega a usar a terminologia de guerra para traçar seus planos quanto a conquistas amorosas, como a que pretende e consegue com a senhora de Renal. O uso desse tipo de terminologia de guerra em assunto tão diverso era algo constantemente feito pelo próprio Stendhal, uma vez que ele fora oficial do regimento de dragões, na Itália.
Da chegada do rei a Verrières é organizada uma cerimônia para recebê-lo. O prefeito mostra-se preocupado em escolher a pessoa que comandará a guarda de honra no cortejo do rei. De forma alguma se pode ter um liberal nessa posição tão importante da cerimônia. Ele persuade o Senhor de Moirod, figura muito bem vista no meio conservador para comandar o cortejo, através de um discurso de defesa das instituições que são os pilares do regime monárquico. Eis a apreensão de suas palavras:
“O Senhor bem vê que preciso de suas opiniões, é como se já ocupasse o cargo para o qual todas as pessoas honestas o indicam. Nesta cidade infeliz, as manufaturas prosperam, o partido liberal torna-se milionário, aspira ao poder, fará armas de tudo. Consultemos o interesse do rei, o interesse da monarquia, e, antes de tudo, o interesse de nossa santa religião. A quem pensa o senhor que poderemos confiar o comando da guarda de honra?” [5]
Nota-se que Stendhal em nenhum momento cita o nome do rei, em lugar disso ele introduz algumas reticências, muito provavelmente pelo fato de escrever esse romance na década de 1820 e por isso temer alguma represália. O ponto alto da cerimônia, na abadia gótica de Bray-le-Haut, “meio destruída pelo vandalismo revolucionário, fora magnificamente reconstruída após a Restauração, e começava-se a falar em milagres,”[6] mostra como a instituição da Igreja Católica tem uma grande importância para a Restauração. Até mesmo na própria cerimônia religiosa buscou-se voltar aos hábitos pré-revolução, uma vez que foram reunidos vinte e quatro curas para representar o antigo capítulo de Bray-le-Haut, composto, antes de 1789, de vinte e quatro cônegos.
            Julien deixa a casa do Senhor de Renal e passa a morar na propriedade de uma família nobre em Paris. Na capital ele continua a execução de seus ambiciosos planos na tentativa de torna-se uma das figuras mais importantes da França. Uma de suas estratégias é seduzir as mulheres dos da nobreza e assim fazer com que elas influenciem os seus maridos, pais, etc, para que ele possa galgar mais posições na sua escalada social. No reencontro com a Senhora de Renal, o nosso jovem personagem acaba matando-a, fato que o leva, assim como um Robespierre, a ser executado. Esse episódio da execução de Julien Sorel fora retirado por Stendhal de um caso verídico, o fuzilamento em Grenoble do ex-seminarista Antonie Berthet em 1828, que atirara em plena missa contra a ex-amante, a senhora Michoud de La Tour. Stendhal, ao escrever O Vermelho e o Negro, procurou escrever a crônica de seu tempo, ou seja, já que se valeu do calor dos acontecimentos, uma vez que ele próprio foi testemunha do período da Restauração.

Referências:
STENDHAL. O Vermelho e o Negro. São Paulo: Martin Claret, 2006.
HOBSBAWM, Eric J, A Era das Revoluções. 23ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2008.
SOUBOUL, Albert. A Revolução Francesa. 8ª edição. Rio de Janeiro, DIFEL, 2003.


[1] HOBSBAWM, Eric J, A Era das Revoluções. 23ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2008. (p.267)
[2] STENDHAL. O Vermelho e o Negro. São Paulo: Martin Claret, 2006.
[3] STENDHAL. O Vermelho e o Negro. São Paulo: Martin Claret, 2006. (p.106)
[4] STENDHAL. O Vermelho e o Negro. São Paulo: Martin Claret, 2006. (p.106)
[5] STENDHAL. O Vermelho e o Negro. São Paulo: Martin Claret, 2006. (p.109)
[6] STENDHAL. O Vermelho e o Negro. São Paulo: Martin Claret, 2006. (p.113)