quinta-feira, 16 de junho de 2011


O ENIGMA DO SAPO
para Paulo Cesar

Os seus mistérios e os infinitos
repousam para o recôncavo
ou melhor, para longe
lugar em que pulam, incansáveis
flutuantes, descobrindo os seus caminhos
Quando desenhas sapos
deseja, indiretamente:
rasgar os sonhos plantados no peito
para que de um só pulo
compartilhemos.


Jorge Raimundo
09 de maio de 2011.



O Enigma do Sapo
Na penumbra da sala assistia-se a um documentário. A cultura pré-colombiana  nos era apresentada através do povo Moche. Sentado ao fundo apoiava minha cabeça na parede, sentia-me um pouco sonolento após um dia de aulas. Olhava as imagens com certo desinteresse, pensava em outras tribos. Os outros alunos conversavam enquanto assistiam ao documentário. Peguei um pedaço de papel e uma caneta para anotar alguma informação que julgasse digna de nota. Mantive-me imóvel. A porta da sala se abriu, observei, pela luz da porta entreaberta, quem acabava de chegar. Ela atravessou o aposento esquivando-se das cadeiras e sentou-se ao meu lado. “Que filme é esse?”. “Cultura Moche”, assim lhe resumi. Ajeitou-se melhor na cadeira e pediu-me uma bala, ou foi doce, não lembro exatamente. Ofereci-lhe uma das muitas que trazia na mochila, logo voltando minha atenção novamente para a tela. Senti vontade de conversar, retive-me, não queria incomodar os que prestavam mais atenção do que eu ao documentário. Ainda assim iniciamos uma conversação entrecortada, eu aos sussurros e tendo que repetir sempre o que dizia, pois meu tom de voz nem sempre se fez ouvir. Ela a meia voz e com a fala mais inteligível.
            Ambos calaram e olharam para a tela. Não demorou e o papel do doce dela fora guardado em meu bolso, não por mim, que tempo não tive para recusar tal oferenda, tão rápido ela me fora dada. Vê-se que eu já estava confundindo as imagens do filme com a realidade, ao comparar embalagem de doce com algum tipo de oferta Moche. Agora os descendentes indígenas estavam mostrando como se construíam canoas, o principal item do seu artesanato. Registrei essa informação no papel. Certifiquei-me se ela ainda estava ali, continuava a assistir tranqüilamente. Findo o breve documentário as luzes foram acesas pelo professor. Ele se pôs a falar sobre a cultura indígena da América Latina antes da colonização. Olhei para ela como quem diz que não está disposto a dedicar atenção a fala dele. Ela entendeu-me tacitamente, pegando meu caderno e se pondo a escrever algo. Pela sua expressão risonha e pelo movimento de sua mão percebi que se tratava de um desenho. Fiquei curioso para saber o que surgiria de sua caneta, melhor seria ver o desenho quando já estivesse acabado, aumentaria a surpresa, voltei-me para o professor.
            Passados alguns segundos sua mão me mostrava o papel, havia desenhado um sapo, e pelo seu sorriso notei que ainda não havia completado sua obra. Segurando o papel com ambas as mãos, uma em cada ponta, as aproximaram, nisso o papel meio dobrado revelou um pequeno rasgo, exatamente no local onde estava desenhada a boca do sapo. Esse rasgo se abria quando juntava as mãos e se fechava assim que esticava o papel, fazendo o sapo abrir e fechar a boca. Achei graça do sapo e rimos de sua obra. Ela me ofereceu o anfíbio. Ainda fiquei algum tempo brincando de caçar moscas imaginárias antes de guardá-lo no caderno.
            Lembro que no ônibus a caminho de casa ainda olhei o sapo várias vezes, sempre com uma expressão risonha. Quando acordei no dia seguinte meu sobrinho assistia a um desenho na TV, isso prontamente me fez recordar o sapo. Certifiquei-me no caderno se ele lá permanecia. Continuava ali, olhando-me com seus olhos esbugalhados. Voltei a abrir e fechar sua boca, isso novamente me fez rir. Meu sobrinho, atraído pelo som do meu riso, voltou-se para mim. Mostrei-lhe o sapo e repeti o mesmo movimento, ele também sorriu e logo o queria para si. Tergiversei, fazendo com que voltasse sua atenção novamente para a televisão. O sapo estava a salvo.
            Depois de uma semana atarefada lá estava eu mais uma vez no ponto de ônibus, irritado com a espera. Batia o pé no chão num gesto de impaciência e a todo o momento consultava o relógio. Nisso peguei o caderno com o intuito de consultar algumas anotações. Alguns papéis caíram quando o abri, e entre eles estava o sapo, encarando-me com aqueles olhos risonhos. Mais uma vez a boa sensação emanada pelo anfíbio me invadiu, e recordei o dia em que ele fora feito. Considerei hipóteses acerca da inspiração que a teria levado a desenhá-lo. Teria sido algum pictograma Moche mostrado no documentário a influência para sua criação? Algum desses programas sobre o mundo animal que passam constantemente? Por acaso um dos vários chaveiros que possuía tinha a forma de um sapo? Ou até mesmo sua inspiração não provinha do próprio poema do Bandeira? “Enfunando os papos,/ Saem da penumbra/ Aos pulos, os sapos. / A luz os deslumbra/”. Perdido nessas considerações sobre a relação entre criadora e criatura quase não notei o ônibus parado a espera dos passageiros.
            Mais tarde, observando mais uma vez o desenho, decidi pintá-lo. Foi assim que ele ganhou uma coloração verde marca texto, já que o pintei em meio a leituras sobre a Primavera dos Povos e o conflito entre árabes e israelenses. O verde dera-lhe maior vivacidade. Agora parecia querer sair do papel e percorrer saltitando o quarto. Receoso de que assim o fizesse, perdendo seu caráter inanimado, encarcerei-o, na companhia de outros papéis, dentro de um pequeno vaso. Desse modo passei a visitá-lo uma vez por dia, sempre o fazendo ir à busca de moscas invisíveis e tomando o devido cuidado para que não se perdesse em meio aos outros papéis. Suspeitei que um companheiro seu de vaso-cela, um adesivo de caveira em chamas, estivesse lhe causando transtornos, por isso o fiz retornar para seu antigo lar, o guarda papéis de meu caderno.
            Passaram-se os dias e notei um fato peculiar. No começo abria o caderno para ver o sapo e ele sempre estava lá, parado, me observando. No dia seguinte voltei a verificar se lá ele continuava, e, para minha surpresa, não o encontrei. Teria o perdido num abrir e fechar do caderno? Provavelmente estaria guardado em algum outro lugar que no momento não recordava. Com essa hipótese o esqueci e fiquei muito intrigado quando no dia seguinte consultei o caderno e ele lá se encontrava, agora com uma expressão matreira de quem tentava me convencer de que nunca saíra dali. Esse sumir e reaparecer do sapo durou pelos dias seguintes, até que ele resolveu partir definitivamente.
            Levei algum tempo conjecturando o seu possível destino. Desde o dia em que fora criado ele não parecia ser uma criatura destinada à imobilidade e a contemplação. Recordei daquela que o criara quando estávamos no museu Rodin. Ela apreciava absorvida a escultura do Pensador, dando voltas à procura do melhor ângulo, ou insatisfeita com apenas um ponto de vista e querendo reter todos. É provável que ela tenha feito o sapo como uma espécie de contraposição ao Pensador, dando a ele toda a vivacidade e movimento que faltava a escultura. O sapo seria sua resposta a Rodin, e só ganhando vida ele conseguiria desdizer a escultura. Satisfiz temporariamente seu sumiço com esta explicação.
            Numa dessas madrugadas reencontrei o sapo. O papudo estava numa região árida, de muita poeira. Saltitava tranqüilamente em meio a cobras que o observavam, prontas a dar o bote. Vestia um paletó azul marinho e parecia saber exatamente para onde ir, sequer dava importância para as cobras ao seu redor. Saiu do meio delas pulando sem sofrer um único ataque, chegando numa cidade ocupada por antigas construções. Dentro dela ouviam-se gritos desesperados e o som de armas. Uma batalha se travava. O anfíbio passou em meio a um grupo de homens entrincheirados atrás das ruínas de um prédio.  Pareciam rezar enquanto atiravam. Mais alguns pulos adiante e encontrou novo grupo, agora eram soldados que, segurando tensamente suas armas, moviam-se cautelosamente na direção do local onde os guerrilheiros oradores estavam.
            Então notei que era Jerusalém o local onde o sapo passeava, e ele, de salto em salto, atingiu a torre de uma das igrejas da cidade. De lá seu olhar esbugalhado, outrora risonho, recuou alguns séculos e agora presenciava uma batalha entre um exército de turbantes armados com sabres e outro de elmos providos de espadas. As cobras haviam saído do deserto e agora escalavam a torre da igreja habitada pelo anfíbio. O inverossímil aconteceu. De onde estava o sapo encheu de ar o peito e emitiu um som alto que se fez ouvir por toda a cidade. Os homens que batalhavam: turbantes, elmos, sabres, espadas e fuzis, tornaram-se confusos. O lamento vindo do alto da igreja os desnorteara. “Em ronco que aterra,/ Berra o sapo boi:/ - Meu pai foi à guerra!/ - Não foi! – Foi! – Não foi!”.  O sapo não usava mais o terno, agora dispunha apenas de sua pele de anfíbio. As cobras aproximavam-se cada vez mais e uma já atingira o topo da torre. Preparava-se para atacar o sapo pelas costas. Acordei sobressaltado. À noite o jornal noticiou mais um conflito no Oriente Médio. Foi sem entender que minha mãe ouviu meu disparatado comentário: “Lá não existem sapos”. Voltando-me para o ocorrido me perguntei à razão dele ter ido para Jerusalém. Relembrei que fora colorido em meio aos textos, certamente teria aproveitado a ocasião para lê-los. Imaginei quando e onde o encontraria novamente. Levantei a suspeita de que sua próxima aventura seria em além-mar, uma vez que num certo dia, sua criadora passara muito tempo absorvida na observação das miniaturas dos barcos engarrafadas no Museu Náutico. Olhava indecisa para os barquinhos, tentando escolher qual seria o mais bonito. Pediu minha opinião. Vi que seus olhos brilhavam enquanto os observava. Eles transmitiram-me a mais nova façanha do sapo. Ele, capitão de um veleiro, atravessara o Atlântico em meio a tempestades e calmarias, chegando a uma praia desabitada. Território adentro, acompanhado de uma tripulação de outros bichos, grilos, borboletas, passarinhos, lagartos, e até de um pequeno peixe dourado, carregado pelo sapo, e que certamente se incorporara ao grupo no mar, ia fazendo o papel de guia pela mata. Depois de caminharem um longo tempo (os pássaros e as borboletas foram voando, talvez só os lagartos caminharam, uma vez que sapos e grilos pulam. Lagarto caminha ou rasteja?) chegaram a uma cachoeira escondida entre duas grandes rochas. O sapo aproximou-se da água inclinando o corpo para que o peixe dourado desliza-se e pudesse voltar ao seu lar. “Vamos ver a outra sala!”. Fiquei sem saber como terminou a aventura daquele grupo incomum na floresta marfinense.
            Passou-se muito tempo e não o reencontrei. Voltei a ver sua criadora. Queria que fizesse outro sapo para mim, mas não poderia dizer que o perdera, tinha que revelar a verdade, ele ganhara vida, mesmo que corresse o risco dela não acreditar. Assim o fiz. Ela não acreditou que o papudo agora se movia por aí, não lhe revelei as últimas aventuras de sua criação. Ela prometera-me outro sapo, mas não o faria nesse momento, não estava inspirada, queixava-se de dores, o entregaria a mim noutro dia, afirmando que o colorido do próximo sapo ficaria sob sua responsabilidade. Desconfiei que planejava criar outro anfíbio provido de vida. Assim que nos despedimos lembrei-me de uma história que li na minha infância e que se assemelhava a sua. Tratava-se do menino do dedo verde, assim chamado pelo fato de possuir o dom de fazer crescer flores em qualquer lugar, bastava ele tocar algo com o dedo e lá florescia. Ele mudara Mirapólvora, não mais canhões a fábrica da cidade produziu. Tistu, o menino do dedo verde, fizera dela um gigantesco jardim. “Flores crescem no asfalto, debaixo dos meus pés”. Tomando o exemplo de Tistu, que possuía um apelido por conta de seu dom, quis que aquela que dera vida ao sapo também tivesse um. Vasculhei a memória em busca de um nome digno de seu feito. Não havia um, teria de inventá-lo. Seus dedos criaram o desenho, mas houve um mediador entre eles e o papel, a caneta, instrumento que dera forma ao sapo. Que tal A Menina da Tinta Vivente? Não, lembrei que minha própria caneta fora usada para confeccioná-lo, e por isso não podia atribuir a sua tinta a qualidade de movimentar o inanimado. Já fizera alguns desenhos com ela antes e nenhum ganhara o mundo. A Menina do Papel Mágico também não, meu próprio caderno fora a matéria-prima. Decidir-me pela Menina da Mão Encantada, embora ainda suspeitasse que o segredo se encontrasse nos seus olhos. Ainda tecendo uma relação sua com O Menino do Dedo Verde, lhe atribui um projeto. A saparia seria espalhada pelos muros da cidade e, assim como Mirapólvora virara Miraflores, a cidade se converteria num grande brejo e teríamos que mudar seu nome para Desenho-do-Sapo-Nopólis, nome um tanto longo. Talvez pedisse a ela que, na condição de fundadora da cidade, nomeasse-a adequadamente. Assim foi que, levando em conta tudo que se viu até aqui, não me espantei quando a noite, vendo a lua, fui testemunha da batalha de um sapo vestido de São Jorge contra um dragão que, no lugar da cabeça, tinha um crânio em chamas. Até a lua também já se convertera num gigantesco vaso-cela orbitante.
            Nas minhas divagações daquilo que passei a chamar de O Mistério da Criadora de Sapos me veio à memória o dia em que a vi chorar. Seu coração estava apertado. Seus grandes olhos cheios de lágrimas enterneceram os meus. Um dia me falara deles, hoje eram eles que dela me falavam. Lembro que tive vontade de desenhar algo para fazê-la sorrir, mas não possuía tal habilidade. Foi por isso que me limitei, contrariado com minha falta de jeito para o desenho, a dizer-lhe frases desprovidas de sentido. Queria lhe retribuir o gesto singelo do desenho, afinal um ato sempre valerá mais do que qualquer palavra. Minha inabilidade impediu-me. Reduzi-me as palavras.
 Passados alguns dias, sempre perdia a noção de quanto tempo se passara desde que a tinha visto pela última vez, havia momentos que parecia tê-la visto há séculos, confusão cronológica provavelmente causada pela saudade, então éramos personagens atemporais, vivenciando outras épocas e contextos há muitos ultrapassados, noutros ficava-me a impressão de que tínhamos acabado de trocar palavras no mesmo local onde a relembrara, foi nesse dia, hoje, perdido entre a zetética e a dogmática, que vislumbrei a chave para seu misterioso enigma. Foram os olhos, eles guiaram-me pelo caminho. Fui ao ponto torcendo para que a condução não demorasse. Já a caminho de casa, não querendo perder o raciocínio que me levara à descoberta, acelerava o ônibus mentalmente. Andei apressado, abri o portão e esqueci-me de fechá-lo. Desvencilhei-me da mochila jogando-a no sofá. Onde estava o que eu buscava? Procurei entre os brinquedos espalhados pelo chão e não encontrei. Olhei debaixo dos travesseiros do sofá e lá estava ele, o pequeno caderno de minha sobrinha. Folheei as páginas e deixei-o aberto numa que mostrava um desenho de um forte colorido. Duas meninas passeavam segurando cada uma um balão, por um gramado repleto de flores, ao lado delas havia uma árvore, e sob suas cabeças um sol dotado de um sorriso deixava transparecer que se tratava de um dia bom, convidado-as a brincar. Ao recordar o dia em que minha sobrinha fizera o desenho, que me mostrara sorrindo, lembro que seus olhos comportaram-se de modo diferente, cintilavam como que ofuscados pela luz de sua obra. Entendi que reencontrara esse mesmo olhar no dia em que o outro desenho, o que ganhara vida, fora feito. Assim não me surpreendi quando, olhando novamente para o desenho, avistei um pequeno sapo verde marca texto acompanhando as duas meninas pelo gramado. Ao fundo da imagem um menino corria tentando alcançá-los. Ele enfim voltara para casa.

                                                                                                             
Paulo Cesar de Almeida, Outubro de 2010.

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