terça-feira, 28 de junho de 2011

Degredado na terra da fome

            Ermo. Não se vê viva alma caminhando pelas estradas de terra. O sol forte bate sobre as pequenas plantações abandonadas, arruinadas. Destroços de carros incendiados contrastam com a paisagem rural. Para onde foram as pessoas do povoado? Só o som do vento faz companhia ao silêncio. A destruição do ódio e das armas calara o lugar.
            Há sinal de movimento no local. De dentro das ruínas de um ônibus sai um menino. Dormira próximo a dois corpos carbonizados. Apesar de seu grande medo, era apenas uma criança, tivera que abrigar-se ali. Na noite anterior, ao refugiar-se nas ruínas daquele ônibus, dera as costas para os corpos e tapara os olhos com as mãos. Tiritou a noite toda, menos pelo frio e mais pelo seu temor. Seu sono fora cheio de pesadelos, repleto de fantasmas a persegui-lo. Encolhido, os joelhos próximos ao peito, os braços enlaçando as pernas, chorava. Seu gemido, de tão baixo e reprimido, quase não se podia ouvir entre os sons noturnos. A claridade da manhã invadiu o ônibus, obrigando-o a acordar para o pesadelo real.
            Ele caminhou por alguns minutos, estancou debaixo da sombra de uma árvore frondosa. Para onde ir? Tudo estava destruído. Sua família morrera. As pessoas morreram. As que haviam sobrevivido fugiram do povoado. Quase não havia comida. As plantações estavam prejudicadas. Fazia uma semana que se alimentava apenas de escassos frutos encontrados numas poucas árvores. Bebera água da lama. Dormira dois dias no mato, atormentado pelo som dos animais na noite e das armas ao longe. Não distinguia amigos no som das armas dos guerrilheiros nem tampouco do exército nacional. Não fazia parte de nenhum dos lados, apenas uma criança, não entendia a revolução nem a repressão do regime, fugia. Do alto de seus doze anos, que mais pareciam oito, tão magrinho e miúdo, o semblante de quem está sempre prestes a irromper em choro, se perguntava. Para onde?  Onde eu posso continuar vivendo? Onde a morte não me encontrará?
            Iria ao encontro do mar, talvez lá achasse ajuda, gente que ainda não fora afetada pelo conflito, gente disposta e capaz de socorrê-lo. Uma vez ouvira os adultos falarem de pessoas do estrangeiro, de ajuda internacional. Na sua mente de criança lhe veio às palavras salvadoras. “Direito Humano”. Iria até o mar, lá certamente  encontraria com sua salvação, “Os Direito Humano”.
            Mesmo debilitado, a fome a roer-lhe as entranhas, concentrou-se no seu projeto. Seguiu para o mar percorrendo paralelamente a estrada. Ia pelo mato. Não queria ser visto pelos soldados ou pelos guerrilheiros. Perambulou feito um sonâmbulo por três dias. Alimentou-se apenas de uns pequenos frutos que trouxera consigo num surrado saco de pano que fazia vezes de mochila. Como sabia que o mar era naquela direção? Seu pai um dia lhe dissera. “Pra lá, pra além daqueles montes, Kibano, está o mar. Ainda vou lhe ensinar a pescar.” Seu pai fora pescador antes de mudar-se para o povoado.
            Kibano avistou a grande massa azul. Estava em cima de um morro e pôde ter uma visão privilegiada da praia. Não havia quase ninguém, apenas pequenos barcos pesqueiros flutuavam a alguns metros da areia. Mais adiante um grande navio dirigia-se a costa. Kibano foi atraído pelo navio, certamente para onde ele estava indo se encontrava o porto. Caminhou durante uma hora pela encosta até que, do alto, pôde ver o porto. O grande navio que vira passar lá estava atracado. Vários homens desciam de sua estrutura cinza metálico, descarregando-o. Kibano interessou-se pelo que era descarregado. Talvez comida? Estariam trazendo a tão esperada ajuda para o povo que sofria com o conflito. Era isso! Era isso! Finalmente mataria a fome que há dias lhe roia as estranhas. Salivou. Não. O sol tocou no conteúdo que um dos homens carregava. Os olhos de Kibano se encheram de lágrimas com o que viu. Os homens descarregavam armas.
            Em um ponto do porto aquele que parecia ser o capitão do navio conversava com alguns homens militarmente vestidos. Fechavam negócio. Pela movimentação dos que estavam no navio Kibano percebeu que eles preparavam-se para partir. Ele desceu a encosta em direção ao porto, esgueirando-se pelo mato e pelas pedras, evitando ser visto. Escondeu-se entre alguns containers. Ficou a bisbilhotar os homens. Viu que um deles se dirigia para onde estava escondido. E agora? Um dos containers estava aberto, escondeu-se nele. Prendeu a respiração e se pôs a escutar. Demorou-se dentro. Quando pensou em sair notou que ele já estava sendo içado. Olhou pela abertura, viu que o chão estava longe. Dessa forma involuntária Kibano tornou-se mais um tripulante do navio, já que não teve oportunidade de desembarcar antes que o grande vapor desatracasse. Um container fez-lhe às vezes de passagem, tornando-o um passageiro ilegal.
            Demorou até o anoitecer para Kibano ver-se livre dos olhos da tripulação. Aproveitando-se desse momento esgueirou-se pelos cantos do local de cargas até uma escada que levava para um corredor com várias portas. Com o corredor temporariamente vazio entrou, sempre verificando se havia alguém, na última porta. Viu-se então numa grande cozinha, ocupada por vários fogões. Numa de suas laterais havia uma porta metálica, ao fundo outra de madeira. A porta do lado continha uma pequena janela de vidro na sua parte superior, mas devido à altura Kibano não podia observar seu interior. Um grande balde que estava debaixo de uma pia fez às vezes de escada, e assim ele pôde observar o que lá havia. Era uma sala de refrigeração, repleta de grandes pedaços de carne içados. Foi até a outra porta, rodou cautelosamente a maçaneta, estava aberta, observou o recinto pela fresta antes de adentrá-lo. Várias caixas estavam arrumadas organizadamente. A sala lhe pareceu maior por dentro. Observando o conteúdo de algumas das caixas notou que se tratava de um depósito de alimentos. Rápido pegou um saco que continha algo parecido com arroz e escondeu-se num dos cantos, atrás de um amontoado de caixotes. Sôfrego comeu o alimento, mesmo cru. Enquanto aplacava a fome mantinha os ouvidos atentos a qualquer ruído de movimento dos tripulantes em direção ao depósito. Escondeu-se por cinco dias, sobrevivendo através dos alimentos estocados e de fortuitas idas à cozinha, até o navio chegar a um grande porto.
            Mais uma vez o container fez às vezes de passaporte, e assim Kibano, embora não soubesse em que cidade e em que país se encontrava, viu-se em solo ultramarino. Ao sair do porto avistou a imponente figura de uma estátua. Lembrou-se de algumas fotos que uma turista estrangeira lhe dera quando ainda estava em sua pátria. Numa delas ela estava em frente a uma grande torre iluminada, noutra havia uma grande pirâmide como pano de fundo. Distanciando-se do porto pelas ruas da grande cidade Kibano volta e meia virava-se para contemplar a estátua ao longe. A visão dela lhe transmitia confiança, como se aquela figura materializasse as boas vindas da cidade para ele. Enchia-o de esperança quanto ao seu futuro na nova pátria. Toda essa confiança sofreu um grave abalo. Sentado numa calçada um mendigo pedia esmolas. Kibano estremeceu. Como podia ali, numa cidade tão bonita, onde tudo parecia tão organizado e farto, existir alguém que, assim como ele, esperava ansiosamente por comida? Os que passavam pela calçada pareciam não notar o pedinte. Um repentino medo invadiu Kibano, petrificando-o. Olhou novamente para a estátua ao longe, sobrepondo-se as águas. Relembrou os cartões postais. A turista parecia alegre nas fotografias, com um sorriso um tanto idiota acompanhando aquelas construções grandiosas. Então era isso? Escondiam o que se passava com o povo através daqueles postais? Por que não faziam outros registrando as mazelas destas cidades? Achou uma injustiça não falarem dos que, assim com ele, sobreviviam rastejando-se perante os demais. Julgou-se iludido. Mentiram-lhe ao esconderem parte da realidade, a parte que lhe era tão presente, a parte da qual ele tentava escapar e sem saber viera novamente ao encontro dela.
           
Caminhando tentava passar despercebido pelos transeuntes. Sentia frio. Sua roupa, uma camisa e uma calça de panos finos, eram incapazes de protegê-lo do vento gélido. Exausto, sentou-se em um dos bancos de uma praça. Os outros bancos estavam vazios. Sonolento encolheu-se sobre si para amenizar o frio. Adormeceu tremendo.
 - Vamos, não há tempo a perder!  - É acordado por essa exortação - Eles estão chegando, precisamos correr! Monte no seu corcel e partamos! Não há balas suficientes para enfrentá-los, se ficarmos seremos pegos, como numa emboscada! Estamos à mercê de nossa própria valentia, fujamos agora para derrotá-los amanhã! Não fique parado aí, vista rapidamente seu uniforme!
            O homem andrajoso jogou-lhe uma velha jaqueta. Estupefato, ainda situando-se a realidade após ser acordado de forma tão inusitada, ele a veste, abrandando o frio. O desconhecido segue com sua chamada, tenta convencê-lo a acompanhá-lo. Apesar de sua esquisitice, decide segui-lo.
            - Monte no seu corcel! – dá-lhe algo parecido com um cabo de vassoura contendo um boné em sua ponta e sai em disparada “galopando” o seu próprio corcel de Tróia.
            Kibano o segue, não galopa, trás o cavalo debaixo do braço. Vão em direção a um beco estreito, onde ao fundo se encontra uma grande lata de lixo. O andrajoso explica:
- Está é minha casa, ninguém sabe onde fica. Aqui não existe chance de alguém me encontrar. No calor da fuga esqueci-me de apresentar-me. Chamo-me Furtigas, sendo mais preciso, Capitão Furtigas! Faço parte do exército do Desmembramento, grupo defensor da emancipação dos alimentos enclausurados na valoração monetária mercadológica globalizante. Sonho um dia poder degustar algo socialmente produzido desvirtuado de valoração. – Estende-lhe a mão num amistoso gesto.
            Dentro da casa-lixeira Kibano pôde se proteger melhor do frio. Furtigas deu-lhe algo para comer. Parcialmente saciado, a barriga ainda pedia mais, Kibano foi sendo tomado pelo sono. Não demorou a adormecer, suas energias eram escassas, precisava recompor-se. Quando acordou tentou sair da casa-lixeira, mas a tampa de metal era muito pesada para seus bracinhos franzinos. Começou a sentir-se sufocado lá dentro, sua incapacidade de sair de repente criou-lhe uma claustrofobia. Abria a boca como quem grita, mas nenhum som lhe saia. Exausto de tentar levantar a tampa deitou-se arfante e choroso. Assim foi encontrado por Furtigas quando este retornou.
- O que ocorreu companheirinho? Tão amuado aí? Aqui ao lado tem uma pequena janela, pelo seu tamanhinho certamente ela lhe servirá de porta. Venha comigo, vamos conseguir nossa subsistência – ajudou-o a sair da lixeira e foi-se com ele a percorrer as ruas.
            Furtigas caminhava e a toda hora olhava para os lados, como quem está  à procura de algo. Kibano vinha um pouco atrás, seu passinho miúdo não era capaz de acompanhar a passada larga do capitão. Volte e meia Furtigas parava para que o pequeno não o perdesse de vista.
            - Disposição, pequeno! Nesse ritmo quando chegarmos lá não haverá mais nada que se aproveite. E se não encontrarmos o que comer tampouco a valoração nos deixará comer. Ela manterá nossa fome viva por toda noite.
            Enveredaram por uma rua estreita e pararam próximo a porta dos fundos de um pequeno restaurante. Furtigas olhou para os lados certificando-se que não eram observados. Começou a revirar o lixo e pediu a Kibano que guardasse numa sacola tudo o que ainda podia se comer que encontrava. Após o capitão chafurdar todo o lixo eles retornaram para a casa-lixeira.
           
Nosso pequeno imigrante logo percebeu como funcionava o cotidiano de um morador de rua naquela cidade, se é que há como considera-se um morador sem uma morada, de todo modo não esqueçamos da casa-lixeira. Furtigas mostrou-se um ótimo anfitrião, e Kibano não demorou a adaptar-se ao seu novo estilo de vida. Além de procurar comida pelas lixeiras das cidades, Furtigas o ensinara a escolher as melhores, sempre as dos restaurantes ou de supermercados.  Kibano também pedia esmolas. Sentava-se em escadarias de igrejas, perto de bares, nas praças da cidade, mas nunca estendia a mão. Deixava-se ficar até que alguém o notasse e jogasse alguma moeda. Era um péssimo pedinte. Nunca vira Furtigas mendigar, sempre que Kibano o fazia estava sozinho. Nos primeiros dias na cidade andaram sempre juntos, mas agora perambulava sozinho, já que o capitão passava a maior parte do tempo longe dos arredores da casa-lixeira. Parecia que só tinha esperado que o pequeno aprendesse a se virar sozinho.
            Numa de suas andanças pelo parque da cidade Kibano encontrou algumas pessoas conduzindo cães pelas coleiras. A maioria delas parecia conversar com eles. Enquanto andavam dirigiam algumas palavras aos animais, alguns até gesticulavam para facilitar o entendimento dos bichos. Por vezes lançavam algo no chão para que eles comecem, mas a maioria dava-lhes algo diretamente na boca. O menino encontrou uma oportunidade naquilo. Chegando cada vez mais próximo do caminho por onde passavam cães e donos esperava o momento certo para agir. Uma senhora se aproximava conduzindo-se por cinco pequenos cães, cada um com pêlo de cor diferente. Aquela algazarra de cores chamou a atenção do pequeno, parecia que haviam pintado os cinco cãezinhos. Verde. Comprido de pernas. Amarelo. Agitado e ligeiro. Azul. Gordinho e miúdo. Rosa. Parava a todo o momento. Vermelho. O único com cara de bravo. Já estavam muito próximos. A mulher retirou algo da bolsa, jogou para eles. Amarelo! Ligeiro o menino correu e jogou-se no chão agarrando as cinco bolinhas. Levantou-se já correndo. Olhou para as próprias pernas. Verde! Corre! Corre! Olhou para traz. Vermelho! Medo! Medo! Olhou novamente. A mulher estava parada segurando os cães, paralisada e muito surpresa. Rosa!
            O pequeno escondeu-se entre alguns arbustos para poder desfrutar tranqüilamente da pilhagem. Avidamente mastigou os duros bolinhos de ração. Sua respiração ainda estava acelerada. Quando terminou de comer pensou no cachorro azul. Olhou para si, o pequeno estômago dilatado. O restante do corpo. Muito longe do azul.
            Passaram-se alguns dias até renascer nova coragem para retornar ao parque. Há quase uma semana não via Furtigas. O capitão não aparecera na casa-lixeira. Sentado num dos bancos olhava novamente as pessoas que passeavam com os cães. Notou um grupo formando um circulo debaixo de uma das árvores do parque. Pelo modo como se portavam lhe pareceu uma confabulação. Curioso aproximou-se um pouco, tendo o cuidado de não ser notado. Tratava-se de cerca de doze maltrapilhos, certamente mendigos como ele próprio. Avistou Furtigas entre eles. Era quem mais falava, parecia explicar algo para os demais. Gesticulava muito, volta e meia apontando os transeuntes com os cachorros. Nesse meio tempo houve uma agitação no grupo. Furtigas deu a ordem e eles se dispuseram acocorados atrás dos arbustos que ladeavam o caminho. Kibano viu a mulher dos cachorros coloridos vindo pelo caminho. Assim que ela passou  pelo trecho onde o grupo de Furtigas estava escondido foi surpreendida. Eles agarraram os pequenos cachorros enquanto ela gritava histérica. Correram carregando os animais, e ela continuou ecoando seu grito. Kibano ficou sem entender o ocorrido, e mesmo não participando dele julgou mais prudente sair do parque. Já noite, quando dormia na casa-lixeira foi acordado por um Furtigas delirante.
- Olhe pequeno! Veja o que conseguimos hoje! Pegamos os pequenos carneiros coloridos! Vamos assá-los ainda hoje. Venha comigo, os outros nos esperam – disse isso abrindo o saco plástico que trazia, ele continha o pequeno cão azul, morto.
            Kibano sentiu pena do animal. Teve medo. Furtigas não entendeu quando o garoto saiu em disparada. Não tentou alcançá-lo. Depois lhe traria um pedaço de carne, já assado, evidentemente.
           
No dia seguinte o menino voltou a casa-lixeira, mas Furtigas não estava. Achou melhor assim. O caso do cachorro morto ainda o incomodava. O capitão não retornou por um tempo mais longo que os anteriores. O pequeno já se acostumara a viver só. Durante esses dias passou a mendigar na frente das lojas da cidade, seguindo o exemplo de outros pedintes. Foi tratado com hostilidade pelos funcionários das lojas. Ele não combinava com os modernos eletrodomésticos nem com as roupas da última moda. Era visto com desconfiança e repulsa pela multidão de consumidores que entravam e saiam. Por raras vezes lançavam-lhe olhares de uma falsa e forçada compaixão. Numa noite que não teve forças para retornar a casa-lixeira deixou-se dormir jogado na frente de uma das lojas. Acordou na madrugada com gritos que vinham da calçada do outro lado da rua. Alguém agonizava sobre uma poça de sangue. O  pequeno correu. Correu até sentir que o ar lhe faltava. Aturdido, percebeu-se no beco da casa-lixeira. Correu para seu refúgio, embrulhando-se por completo nos trapos. Demorou a dormir. Seu sono fora cheio de pesadelos, repleto de fantasmas a persegui-lo. Encolhido, os joelhos próximos ao peito, os braços enlaçando as pernas, chorava. Seu gemido, de tão baixo e reprimido, quase não se podia ouvir entre os sons da cidade, mas a claridade da manhã invadiu os pequenos buracos da casa-lixeira, obrigando-o a acordar para o pesadelo real.
            A lembrança do mendigo expirando na calçada permanecia viva em sua mente, amedrontando-o. A noite grudara-se nele e o dia ainda não fora capaz de conjurá-la. Sonolento e assustado caminhava sem rumo, o movimento fazia-o se sentir melhor. Inconscientemente passava pelos mesmos lugares que costumava ir. Latas de lixo do supermercado. Rua estreita dos fundos dos restaurantes. Calçadas das ruas cheias de carros. Parque da cidade. Cachorrinhos conduzindo donos. O banco. Sentou-se. Olhava. O medo.
            Passou horas sentado, o olhar perdido. Parecia observar as pessoas que passavam. Olhava para si. Frio, fome, medo. Já sentira tudo isso antes, como também sentia agora, faziam parte de seu cotidiano, de sua vida, mas havia algo diferente. O medo não vinha mais de fora, como antes. Estava dentro dele, impregnando-o. A fome se fazia sentir, mas não era tão percebida como antes. O medo tomara a parte que cabia a ela em seu pequeno corpo, diminuindo-a, ao mesmo tempo ocorreu o inverso com o frio, que  aumentou. Um cão avermelhado vinha pelo caminho. Não era um dos cinco trazidos pela mulher. Deveria ter tido o mesmo destino do cão azul. Melhor ir embora.
            A noite já descera sobre a cidade e o menino voltava para sua morada. Entrou pelo beco escuro olhando para chão. Aproximou-se devagar até onde estaria a grande lata de lixo. A casa-lixeira não estava mais ali. Alguém a tinha retirado. Olhou para todos os lados do beco a procura dela. Não a encontrou. Notou que no fim do beco havia um amontoado maior de lixo. Aproximou-se na esperança de que a casa-lixeira estivesse por baixo daquele amontoado. Devagar foi retirando algumas embalagens que compunham o monte de lixo. Não sentia algo sólido como o metal da casa-lixeira por baixo da sujeira. Parou ao perceber que tocara algo diferente. Tentou puxar, mas era muito pesado. Retirou o que estava encobrindo o objeto e então percebeu, paralisado, o que acabara de tocar. De dentro do lixo aparecia a cabeça ensangüentada de Furtigas, morto. O resto do corpo não podia ser visto, encoberto pelo restante do lixo. 
            Kibano sentiu-se tonto. Abaixou-se apoiando as mãos no chão para conter a vertigem. Redobrou-se seu medo a se notar ali, na companhia de um cadáver no beco escuro. Levantou-se e se pôs a caminhar tropegamente em direção as ruas. O barulho dos carros e os grandes luminosos das lojas só faziam aumentar sua confusão. Não fazia parte de nenhum dos lados, não era consumidor nem tampouco proprietário, era apenas uma criança, que fugia. Do alto de seus doze anos, que mais pareciam oito, tão magrinho e miúdo, o semblante de quem está sempre prestes a irromper em choro, se perguntava. Para onde?  Onde eu posso continuar vivendo? Onde a morte não me encontrará?
            Chegara novamente ao porto. Procurou com os olhos os containers. Havia um guarda os vigiando. Pensou em se aproximar dos containers pelo outro lado, mas viu que dois grandes cães também os guardavam. Praticamente todo o porto estava sob vigilância. Num canto mais afastado, distante da iluminação, percebeu que havia uma embarcação atracada. Aproximando-se notou um navio. Era um transportador de lixo, apenas contento quase que praticamente o local onde os detritos estavam apinhados. Viu que dois homens jogavam alguns toneis dentro do amontoado. Enquanto levavam mais um Kibano aproveitou para esconder-se num dos outros toneis. Levantaram-no e o jogaram junto aos demais, no grande amontoado. Foi assim que o menino se viu a bordo do navio-lixeira que partia sabe-se lá para que destino. Uma praia em além mar? O oceano? Uma reserva ambiental? Destino incerto. Quando viu que o navio distanciara-se do porto moveu-se para fora do tonel. Ficou a olhar as luzes da cidade se tornando cada vez menores, mais distantes. Olhou até elas se transformarem em pontos luminosos, em pequenos pontos. Olhou até não poder mais ver. Olhou até que o breu da noite as apagou. Agora só havia pontos luminosos lá em cima, no céu.

Paulo Cesar de Almeida, Abril de 2011.

quinta-feira, 16 de junho de 2011


O ENIGMA DO SAPO
para Paulo Cesar

Os seus mistérios e os infinitos
repousam para o recôncavo
ou melhor, para longe
lugar em que pulam, incansáveis
flutuantes, descobrindo os seus caminhos
Quando desenhas sapos
deseja, indiretamente:
rasgar os sonhos plantados no peito
para que de um só pulo
compartilhemos.


Jorge Raimundo
09 de maio de 2011.



O Enigma do Sapo
Na penumbra da sala assistia-se a um documentário. A cultura pré-colombiana  nos era apresentada através do povo Moche. Sentado ao fundo apoiava minha cabeça na parede, sentia-me um pouco sonolento após um dia de aulas. Olhava as imagens com certo desinteresse, pensava em outras tribos. Os outros alunos conversavam enquanto assistiam ao documentário. Peguei um pedaço de papel e uma caneta para anotar alguma informação que julgasse digna de nota. Mantive-me imóvel. A porta da sala se abriu, observei, pela luz da porta entreaberta, quem acabava de chegar. Ela atravessou o aposento esquivando-se das cadeiras e sentou-se ao meu lado. “Que filme é esse?”. “Cultura Moche”, assim lhe resumi. Ajeitou-se melhor na cadeira e pediu-me uma bala, ou foi doce, não lembro exatamente. Ofereci-lhe uma das muitas que trazia na mochila, logo voltando minha atenção novamente para a tela. Senti vontade de conversar, retive-me, não queria incomodar os que prestavam mais atenção do que eu ao documentário. Ainda assim iniciamos uma conversação entrecortada, eu aos sussurros e tendo que repetir sempre o que dizia, pois meu tom de voz nem sempre se fez ouvir. Ela a meia voz e com a fala mais inteligível.
            Ambos calaram e olharam para a tela. Não demorou e o papel do doce dela fora guardado em meu bolso, não por mim, que tempo não tive para recusar tal oferenda, tão rápido ela me fora dada. Vê-se que eu já estava confundindo as imagens do filme com a realidade, ao comparar embalagem de doce com algum tipo de oferta Moche. Agora os descendentes indígenas estavam mostrando como se construíam canoas, o principal item do seu artesanato. Registrei essa informação no papel. Certifiquei-me se ela ainda estava ali, continuava a assistir tranqüilamente. Findo o breve documentário as luzes foram acesas pelo professor. Ele se pôs a falar sobre a cultura indígena da América Latina antes da colonização. Olhei para ela como quem diz que não está disposto a dedicar atenção a fala dele. Ela entendeu-me tacitamente, pegando meu caderno e se pondo a escrever algo. Pela sua expressão risonha e pelo movimento de sua mão percebi que se tratava de um desenho. Fiquei curioso para saber o que surgiria de sua caneta, melhor seria ver o desenho quando já estivesse acabado, aumentaria a surpresa, voltei-me para o professor.
            Passados alguns segundos sua mão me mostrava o papel, havia desenhado um sapo, e pelo seu sorriso notei que ainda não havia completado sua obra. Segurando o papel com ambas as mãos, uma em cada ponta, as aproximaram, nisso o papel meio dobrado revelou um pequeno rasgo, exatamente no local onde estava desenhada a boca do sapo. Esse rasgo se abria quando juntava as mãos e se fechava assim que esticava o papel, fazendo o sapo abrir e fechar a boca. Achei graça do sapo e rimos de sua obra. Ela me ofereceu o anfíbio. Ainda fiquei algum tempo brincando de caçar moscas imaginárias antes de guardá-lo no caderno.
            Lembro que no ônibus a caminho de casa ainda olhei o sapo várias vezes, sempre com uma expressão risonha. Quando acordei no dia seguinte meu sobrinho assistia a um desenho na TV, isso prontamente me fez recordar o sapo. Certifiquei-me no caderno se ele lá permanecia. Continuava ali, olhando-me com seus olhos esbugalhados. Voltei a abrir e fechar sua boca, isso novamente me fez rir. Meu sobrinho, atraído pelo som do meu riso, voltou-se para mim. Mostrei-lhe o sapo e repeti o mesmo movimento, ele também sorriu e logo o queria para si. Tergiversei, fazendo com que voltasse sua atenção novamente para a televisão. O sapo estava a salvo.
            Depois de uma semana atarefada lá estava eu mais uma vez no ponto de ônibus, irritado com a espera. Batia o pé no chão num gesto de impaciência e a todo o momento consultava o relógio. Nisso peguei o caderno com o intuito de consultar algumas anotações. Alguns papéis caíram quando o abri, e entre eles estava o sapo, encarando-me com aqueles olhos risonhos. Mais uma vez a boa sensação emanada pelo anfíbio me invadiu, e recordei o dia em que ele fora feito. Considerei hipóteses acerca da inspiração que a teria levado a desenhá-lo. Teria sido algum pictograma Moche mostrado no documentário a influência para sua criação? Algum desses programas sobre o mundo animal que passam constantemente? Por acaso um dos vários chaveiros que possuía tinha a forma de um sapo? Ou até mesmo sua inspiração não provinha do próprio poema do Bandeira? “Enfunando os papos,/ Saem da penumbra/ Aos pulos, os sapos. / A luz os deslumbra/”. Perdido nessas considerações sobre a relação entre criadora e criatura quase não notei o ônibus parado a espera dos passageiros.
            Mais tarde, observando mais uma vez o desenho, decidi pintá-lo. Foi assim que ele ganhou uma coloração verde marca texto, já que o pintei em meio a leituras sobre a Primavera dos Povos e o conflito entre árabes e israelenses. O verde dera-lhe maior vivacidade. Agora parecia querer sair do papel e percorrer saltitando o quarto. Receoso de que assim o fizesse, perdendo seu caráter inanimado, encarcerei-o, na companhia de outros papéis, dentro de um pequeno vaso. Desse modo passei a visitá-lo uma vez por dia, sempre o fazendo ir à busca de moscas invisíveis e tomando o devido cuidado para que não se perdesse em meio aos outros papéis. Suspeitei que um companheiro seu de vaso-cela, um adesivo de caveira em chamas, estivesse lhe causando transtornos, por isso o fiz retornar para seu antigo lar, o guarda papéis de meu caderno.
            Passaram-se os dias e notei um fato peculiar. No começo abria o caderno para ver o sapo e ele sempre estava lá, parado, me observando. No dia seguinte voltei a verificar se lá ele continuava, e, para minha surpresa, não o encontrei. Teria o perdido num abrir e fechar do caderno? Provavelmente estaria guardado em algum outro lugar que no momento não recordava. Com essa hipótese o esqueci e fiquei muito intrigado quando no dia seguinte consultei o caderno e ele lá se encontrava, agora com uma expressão matreira de quem tentava me convencer de que nunca saíra dali. Esse sumir e reaparecer do sapo durou pelos dias seguintes, até que ele resolveu partir definitivamente.
            Levei algum tempo conjecturando o seu possível destino. Desde o dia em que fora criado ele não parecia ser uma criatura destinada à imobilidade e a contemplação. Recordei daquela que o criara quando estávamos no museu Rodin. Ela apreciava absorvida a escultura do Pensador, dando voltas à procura do melhor ângulo, ou insatisfeita com apenas um ponto de vista e querendo reter todos. É provável que ela tenha feito o sapo como uma espécie de contraposição ao Pensador, dando a ele toda a vivacidade e movimento que faltava a escultura. O sapo seria sua resposta a Rodin, e só ganhando vida ele conseguiria desdizer a escultura. Satisfiz temporariamente seu sumiço com esta explicação.
            Numa dessas madrugadas reencontrei o sapo. O papudo estava numa região árida, de muita poeira. Saltitava tranqüilamente em meio a cobras que o observavam, prontas a dar o bote. Vestia um paletó azul marinho e parecia saber exatamente para onde ir, sequer dava importância para as cobras ao seu redor. Saiu do meio delas pulando sem sofrer um único ataque, chegando numa cidade ocupada por antigas construções. Dentro dela ouviam-se gritos desesperados e o som de armas. Uma batalha se travava. O anfíbio passou em meio a um grupo de homens entrincheirados atrás das ruínas de um prédio.  Pareciam rezar enquanto atiravam. Mais alguns pulos adiante e encontrou novo grupo, agora eram soldados que, segurando tensamente suas armas, moviam-se cautelosamente na direção do local onde os guerrilheiros oradores estavam.
            Então notei que era Jerusalém o local onde o sapo passeava, e ele, de salto em salto, atingiu a torre de uma das igrejas da cidade. De lá seu olhar esbugalhado, outrora risonho, recuou alguns séculos e agora presenciava uma batalha entre um exército de turbantes armados com sabres e outro de elmos providos de espadas. As cobras haviam saído do deserto e agora escalavam a torre da igreja habitada pelo anfíbio. O inverossímil aconteceu. De onde estava o sapo encheu de ar o peito e emitiu um som alto que se fez ouvir por toda a cidade. Os homens que batalhavam: turbantes, elmos, sabres, espadas e fuzis, tornaram-se confusos. O lamento vindo do alto da igreja os desnorteara. “Em ronco que aterra,/ Berra o sapo boi:/ - Meu pai foi à guerra!/ - Não foi! – Foi! – Não foi!”.  O sapo não usava mais o terno, agora dispunha apenas de sua pele de anfíbio. As cobras aproximavam-se cada vez mais e uma já atingira o topo da torre. Preparava-se para atacar o sapo pelas costas. Acordei sobressaltado. À noite o jornal noticiou mais um conflito no Oriente Médio. Foi sem entender que minha mãe ouviu meu disparatado comentário: “Lá não existem sapos”. Voltando-me para o ocorrido me perguntei à razão dele ter ido para Jerusalém. Relembrei que fora colorido em meio aos textos, certamente teria aproveitado a ocasião para lê-los. Imaginei quando e onde o encontraria novamente. Levantei a suspeita de que sua próxima aventura seria em além-mar, uma vez que num certo dia, sua criadora passara muito tempo absorvida na observação das miniaturas dos barcos engarrafadas no Museu Náutico. Olhava indecisa para os barquinhos, tentando escolher qual seria o mais bonito. Pediu minha opinião. Vi que seus olhos brilhavam enquanto os observava. Eles transmitiram-me a mais nova façanha do sapo. Ele, capitão de um veleiro, atravessara o Atlântico em meio a tempestades e calmarias, chegando a uma praia desabitada. Território adentro, acompanhado de uma tripulação de outros bichos, grilos, borboletas, passarinhos, lagartos, e até de um pequeno peixe dourado, carregado pelo sapo, e que certamente se incorporara ao grupo no mar, ia fazendo o papel de guia pela mata. Depois de caminharem um longo tempo (os pássaros e as borboletas foram voando, talvez só os lagartos caminharam, uma vez que sapos e grilos pulam. Lagarto caminha ou rasteja?) chegaram a uma cachoeira escondida entre duas grandes rochas. O sapo aproximou-se da água inclinando o corpo para que o peixe dourado desliza-se e pudesse voltar ao seu lar. “Vamos ver a outra sala!”. Fiquei sem saber como terminou a aventura daquele grupo incomum na floresta marfinense.
            Passou-se muito tempo e não o reencontrei. Voltei a ver sua criadora. Queria que fizesse outro sapo para mim, mas não poderia dizer que o perdera, tinha que revelar a verdade, ele ganhara vida, mesmo que corresse o risco dela não acreditar. Assim o fiz. Ela não acreditou que o papudo agora se movia por aí, não lhe revelei as últimas aventuras de sua criação. Ela prometera-me outro sapo, mas não o faria nesse momento, não estava inspirada, queixava-se de dores, o entregaria a mim noutro dia, afirmando que o colorido do próximo sapo ficaria sob sua responsabilidade. Desconfiei que planejava criar outro anfíbio provido de vida. Assim que nos despedimos lembrei-me de uma história que li na minha infância e que se assemelhava a sua. Tratava-se do menino do dedo verde, assim chamado pelo fato de possuir o dom de fazer crescer flores em qualquer lugar, bastava ele tocar algo com o dedo e lá florescia. Ele mudara Mirapólvora, não mais canhões a fábrica da cidade produziu. Tistu, o menino do dedo verde, fizera dela um gigantesco jardim. “Flores crescem no asfalto, debaixo dos meus pés”. Tomando o exemplo de Tistu, que possuía um apelido por conta de seu dom, quis que aquela que dera vida ao sapo também tivesse um. Vasculhei a memória em busca de um nome digno de seu feito. Não havia um, teria de inventá-lo. Seus dedos criaram o desenho, mas houve um mediador entre eles e o papel, a caneta, instrumento que dera forma ao sapo. Que tal A Menina da Tinta Vivente? Não, lembrei que minha própria caneta fora usada para confeccioná-lo, e por isso não podia atribuir a sua tinta a qualidade de movimentar o inanimado. Já fizera alguns desenhos com ela antes e nenhum ganhara o mundo. A Menina do Papel Mágico também não, meu próprio caderno fora a matéria-prima. Decidir-me pela Menina da Mão Encantada, embora ainda suspeitasse que o segredo se encontrasse nos seus olhos. Ainda tecendo uma relação sua com O Menino do Dedo Verde, lhe atribui um projeto. A saparia seria espalhada pelos muros da cidade e, assim como Mirapólvora virara Miraflores, a cidade se converteria num grande brejo e teríamos que mudar seu nome para Desenho-do-Sapo-Nopólis, nome um tanto longo. Talvez pedisse a ela que, na condição de fundadora da cidade, nomeasse-a adequadamente. Assim foi que, levando em conta tudo que se viu até aqui, não me espantei quando a noite, vendo a lua, fui testemunha da batalha de um sapo vestido de São Jorge contra um dragão que, no lugar da cabeça, tinha um crânio em chamas. Até a lua também já se convertera num gigantesco vaso-cela orbitante.
            Nas minhas divagações daquilo que passei a chamar de O Mistério da Criadora de Sapos me veio à memória o dia em que a vi chorar. Seu coração estava apertado. Seus grandes olhos cheios de lágrimas enterneceram os meus. Um dia me falara deles, hoje eram eles que dela me falavam. Lembro que tive vontade de desenhar algo para fazê-la sorrir, mas não possuía tal habilidade. Foi por isso que me limitei, contrariado com minha falta de jeito para o desenho, a dizer-lhe frases desprovidas de sentido. Queria lhe retribuir o gesto singelo do desenho, afinal um ato sempre valerá mais do que qualquer palavra. Minha inabilidade impediu-me. Reduzi-me as palavras.
 Passados alguns dias, sempre perdia a noção de quanto tempo se passara desde que a tinha visto pela última vez, havia momentos que parecia tê-la visto há séculos, confusão cronológica provavelmente causada pela saudade, então éramos personagens atemporais, vivenciando outras épocas e contextos há muitos ultrapassados, noutros ficava-me a impressão de que tínhamos acabado de trocar palavras no mesmo local onde a relembrara, foi nesse dia, hoje, perdido entre a zetética e a dogmática, que vislumbrei a chave para seu misterioso enigma. Foram os olhos, eles guiaram-me pelo caminho. Fui ao ponto torcendo para que a condução não demorasse. Já a caminho de casa, não querendo perder o raciocínio que me levara à descoberta, acelerava o ônibus mentalmente. Andei apressado, abri o portão e esqueci-me de fechá-lo. Desvencilhei-me da mochila jogando-a no sofá. Onde estava o que eu buscava? Procurei entre os brinquedos espalhados pelo chão e não encontrei. Olhei debaixo dos travesseiros do sofá e lá estava ele, o pequeno caderno de minha sobrinha. Folheei as páginas e deixei-o aberto numa que mostrava um desenho de um forte colorido. Duas meninas passeavam segurando cada uma um balão, por um gramado repleto de flores, ao lado delas havia uma árvore, e sob suas cabeças um sol dotado de um sorriso deixava transparecer que se tratava de um dia bom, convidado-as a brincar. Ao recordar o dia em que minha sobrinha fizera o desenho, que me mostrara sorrindo, lembro que seus olhos comportaram-se de modo diferente, cintilavam como que ofuscados pela luz de sua obra. Entendi que reencontrara esse mesmo olhar no dia em que o outro desenho, o que ganhara vida, fora feito. Assim não me surpreendi quando, olhando novamente para o desenho, avistei um pequeno sapo verde marca texto acompanhando as duas meninas pelo gramado. Ao fundo da imagem um menino corria tentando alcançá-los. Ele enfim voltara para casa.

                                                                                                             
Paulo Cesar de Almeida, Outubro de 2010.